sábado, 31 de maio de 2014

Minas do Pintor


Para mim, o órgão do fotógrafo não é o olho (ele assusta-me), é o dedo: aquilo que está ligado ao disparar da objectiva, ao deslizar metálico das placas (quando o aparelho ainda as utiliza). Gosto desses ruídos mecânicos de uma forma quase voluptuosa, como se, da Fotografia, eles fossem precisamente aquilo - e unicamente aquilo - a que o meu desejo se agarra , quebrando, com o seu estalido seco, a mortalha da pose. 

Roland Barthes in "A Câmara Clara"

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Cortegaça


(...) Cada pessoa julga sempre
que o tédio é propriedade sua, e que os outros têm dias
carregados por uma carroça magnífica. (...)

Gonçalo M. Tavares in "Uma Viagem à Índia", Canto II, 109

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Barrinha de Esmoriz


"Parecia tão absurdo. Tão fútil como polir lenha para a lareira"

Arundhati Roy in "O Deus das Pequenas coisas"

terça-feira, 27 de maio de 2014

Areinho, Ria de Aveiro


Um Reino tão fascinante que não tinha rei.

Gonçalo M. Tavares in "Roland Barthes e Robert Musil"

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Oliva, S João da Madeira


Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

Herberto Helder in "A Faca Não Corta o Fogo"

domingo, 25 de maio de 2014

Ria de Aveiro


Pensar é
colocar seis
gotas de
demónio
num bom
pedaço de
santidade.

Gonçalo M. Tavares in "Roland Barthes e Robert Musil"

sábado, 24 de maio de 2014

Ria de Aveiro


Certos homens transmitem epidemias de segredos: os poetas.
Gonçalo M. Tavares in "A Perna Esquerda de Paris"

A IMAGEM E A MEMÓRIA


Fusão como mistura. Mistura que funde intrinsecamente os elementos e os confunde. Mistura de vários objectos que formam um só... Fusão do trabalho de três fotógrafos num trabalho fotográfico único. Fusão da fotografia com a musica que em conjunto evoca e recria o espaço e o ambiente que procura retratar.

Fusão como transformação de um estado noutro. Passagem de uma a outra coisa. De sólido a liquido. Como todas as "passagens" este é um instante fugaz.
Passagem da Oliva da actividade à inactividade.
Evolução tecnológica da fotografia - imagens captadas de forma analógica, impressas digitalmente.

A fotografia eterniza um momento fugaz. Quando algo é fotografado deixa imediatamente de ser a mesma coisa para passar a ser já outra. A fotografia é sempre o passado congelado, daí a sua colagem ao significado de "memória", e a memória é, sabemos isso muito bem, pessoal e dificilmente transmissível. Terá sempre porções que apenas nos pertencem, que não se traduzem em palavras, que surgem tão repentinamente como assim de repente desaparecem. Simultaneamente nunca estamos certos do que recordamos pois o próprio acto de recordar transforma essa mesma recordação. Assim, nós somos o que memorizamos e o que de nós é memorizado.

Cada um que num determinado momento da sua vida, como trabalhador ou como visitante, passou pela Oliva, construiu a sua própria memória daquele espaço naquele tempo, única e inimitável, memória essa que nós queremos agora fazer reviver. E como as memórias também se constroem, mesmo aqueles que nunca lá estiveram poderão construir as suas memórias de um espaço e de um ambiente que já não existe.

Luís Veloso

sexta-feira, 23 de maio de 2014

"Ponto de Fusão" Exposição de José Vaz e Silva, Luís Veloso e Rui Apolinário, S João da Madeira


Parece que a sabedoria teima em reaparecer como os fungos. A gente pinta a parede, mas não adianta, pois não? O fungo reaparece, como a sabedoria.

Afonso Cruz in "Jesus Cristo bebia cerveja"

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Oliva, S João da Madeira


Toda a fechadura é um sinal de fracasso da humanidade.

Gonçalo M. Tavares in "A Perna Esquerda de Paris"

Ria de Aveiro


Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar

Herberto Helder in "A Faca Não Corta o Fogo"

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Praia da Luz


Nossa alma vai-se com elas,
À procura, quem o sabe?
Doutras esferas mais belas,
Já que no mundo não cabe...
Voando, sem dar um grito,
Através desse infinito,

Nossa alma vai-se com elas!

Antero de Quental in "Nuvens da tarde"

sábado, 17 de maio de 2014

Esmoriz


O mundo exterior existe como um actor num palco: está lá mas é outra coisa.

Fernando Pessoa in "O Livro do Desassossego", 383

Esmoriz


Contraluz

Daqui a 100 anos a população actual do mundo estará morta. Os nossos familiares. Os nossos amigos. Os nossos filhos. Tu e eu. Sete mil milhões de seres humanos desaparecerão para sempre. Todos caminhamos em direcção à luz. Até lá. Vive, em ContraLuz!

Do filme "ContraLuz" de Fernando Fragata

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Estação do Oriente, Lisboa


No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormnindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão

Fernando Pessoa

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Praia de Esmoriz


Parecia uma luz líquida que por vezes surge sem se
pedir: o espaço receio que sobra pelos nossos olhos
labirinto de coisas parecia o movimento local das
brisas todo o trabalho ave da água liberta

parecia claro sobre a madeira e por arder em cores
parecia o mundo em certos dias mas o som crescia:
as velas libertas deixavam sinais da longa espera
das flores sobre uma onda de cal escura (e cristal)

nunca a plena transparência do mundo compreenderá
esse sinal (nunca o compreenderá) nunca a plena
memória do mundo poderá compreender esse sinal

não que cada verão cada distância ao coração seja uma
janela (dois sorrisos) mas nem que mude o sentido
das chuvas sempre os muros serão espuma e o frio: riso

João Luís Barreto Guimarães in "poesia reunida"

terça-feira, 13 de maio de 2014

Oliva, S João da Madeira


- Quem dorme e quem corre? Por vezes não é fácil distinguir, disse o Sr Kraus.
Colocar as pantufas ou os sapatos de atletismo. Eis as duas opções. Os políticos mais astutos são aqueles que até no momento em que calçam pantufas parecem estar, afinal, em intensos preparativos atléticos.
- À origem de tal ilusão de óptica - murmurou o senhor Kraus - poderá chamar-se propaganda ou miopia do observador.

Gonçalo M. Tavares in "O Senhor Kraus"

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Barragem de Santa Clara, Portugal


E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego", 394.

Esmoriz, Portugal


Pia, pia, pia


Pia, pia, pia
Pia, pia, pia
O mocho,
Que pertencia
A um coxo.
Zangou-se o coxo
Um dia,
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia...

Fernando Pessoa

Cortegaça, Portugal


Às coisas paradas podes chamar nomes definitivos. Em relação às coisas que se movem: corres atrás delas.

Gonçalo M. Tavares in " A Perna Esquerda de Paris"

domingo, 11 de maio de 2014

Esmoriz


Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça, e, ao levantar um pouco a cabeça, viu o seu ventre acastanhado, inchado e arredondado em anéis mais rígidos, sobre o qual o cobertor, quase a escorregar, dificilmente se mantinha. As suas numerosas patas, lamentavelmente raquíticas, comparadas com a sua corpulência, remexiam-se desesperadamente diante dos seus olhos.

Franz Kafka in "A Metamorfose"

Minas do Pintor, Nogueira do Cravo


É um mundo de fantasia,
ilusório do principio ao fim,
mas tudo seria real
se acreditasses em mim.

E.Y.Harburg & Harold Arlen in "It's Only a Paper Moon"

Areínho, Ria de Aveiro


... esse episódio da imaginação a que chamamos realidade!

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego", 224

Ponte Carlos, Praga


É como se o "cérebro se fechasse", não reconheço onde estou. Passado algum tempo o "cérebro abre-se" e volto a orientar-me.

"descrição de um sintoma"

Minas do Pintor, Nogueira do Cravo


A terra é uma coisa que nos tolera por cima, mas temporariamente. Por cima da terra és um animal efémero, por baixo da terra ganharás paciência.

Gonçalo M. Tavares in " A Perna Esquerda de Paris"

Ponte da Varela, Murtosa


Entre mim e a vida há uma ponte partida...
Só os meus sonhos passam por ela...
Às vezes na aragem vêm de outra margem
Aromas a uma realidade bela;

Mas só sonhando atravesso o brando
Rio e me encontro a viver e crer...
Se olho bem, vejo - pobre desejo! -
Partida a ponte para Viver...

E então memoro num choro
Uma vida antiga que nunca tive
Em que era inteira a ponte inteira...
E eu podia ir para onde se vive

E então me invade uma saudade
Dum misterioso passado meu
Em que houvesse tido um outro sentido
Que me falta pra ser, não sei como...EU...

Fernando Pessoa

Relógio Astronómico, Praga


(...) na sua origem, o material fotográfico estava ligado às técnicas do marceneiro e da mecânica de precisão; no fundo, os aparelhos eram relógios de ver, e talvez em mim alguém de muito antigo ouve ainda no aparelho fotográfico o barulho vivo da madeira.

Roland Barthes in "A Câmara Clara"

Ria de Aveiro, ponte da Varela, Murtosa


Fluye, apacible, el río.

Nuestros pensamientos,
como agua cansada de verano,
brotan y se deslizan
con sonido líquido por el cauce,

mi compañía.

Anunciada Fernandéz de Córdova in "De Algo Incierto"

S. Jacinto Blues


A Fotografia não diz (forçosamente) "aquilo que já não é", mas apenas e de certeza "aquilo que já foi".

Roland Barthes in "A Câmara Clara"

Belém, Lisboa


Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.
(...)

Antero de Quental in "Aspiração"

Staroměstské náměstí, Praha


Retatoblíquo sentado.

Retratimensamente de/lado, no/acto
conceptual de/ver quantos vivos quantos
dando folhas sobre os mortos de topázio.

Herberto Helder in "A Faca não Corta o Fogo"

Václavské náměstí (Paça Venceslau), Praga


(...) meteu-se num comboio
e no dia seguinte entrou em Praga,
onde logo se acalmou. Os jornais vinham
num horror estrangeiro que por isso lhe
pareceu belo; existiam pássaros nos sítios altos
e não viu mendigos (nem lixo) nos sítios baixos.
Viu, sim, edifícios com o tamanho exacto para serem amados
e um povo que utilizava palavras sorridentes.
Se apenas se deixa de estar doente quando se está feliz,
Bloom deixara de estar doente.

Gonçalo M Tavares in "Uma Viagem à Índia", Canto V, 85

Karlův most (Ponte Carlos) , Praga, República Checa.


A Parte Invisível do Visível


A parte invisível do visível.
De resto conhecer mais o quê?
O Manifesto do Invisível.
Os lobos são a cabeça do anjo que não se vê.
Sangue no Focinho e Cobardia.

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

Quem é invisível? aquele que passa sem (querer) ver?
Ou aquele que rastejante se esconde rente ao chão por onde o outro passa?

Estação de Metro Náměstí Republiky, Praga, República Checa.


Eu estava sentado,

sentado eu estava

Estava pensando,

debaixo da escada

Escada sobe,
escada desce
Até parece,
Que desaparece

Sobe escada,
para onde vai me levar?

Tomara que seja,
para algum lugar

Escada subiu,
escada desceu
Agora fui eu,
que desapareceu



"desconheço o autor"

Rio Vltava, Praga, República Checa.


O todo é feito de nada, e porém para o compreender tem de se ter uma alma que, por pouco que seja, o nada não é.

Umberto Eco in "A ilha do dia antes"