quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Bandar e Laft, Hormozgan, Irão.


A verdade terá necessariamente de ser contraditória. Seria uma contradição se assim não fosse.

Afonso Cruz in "Jalan Jalan"

rainbow mountains, ilha de Hormuz, Irão.


As pessoas preferem uma impossibilidade credível a uma possibilidade inverosímel, disse Aristóteles.

Afonso Cruz in "Jalan Jalan"

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Irão, Dasht-E Lut, nascer do sol nos Kaluts


O mundo punha-se de pé e rugia em apreciação. Arranha-céus e fábricas de aço nasciam onde antes haviam florestas, os rios eram engarrafados e vendidos em supermercados, os peixes enlatados, as montanhas mineradas e transformadas em mísseis reluzentes. Barragens gigantescas iluminavam as cidadescomo árvores de Natal. Toda a gente estava contente.

Arundhati Roy in "O Ministério da Felicidade Suprema"

sábado, 2 de dezembro de 2017

Irão, Dasht-E Lut, pôr do sol nos Kaluts

Fico Sozinho com o Universo Inteiro

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
Os andares vários da acumulação da vida... 
Calaram o piano no terceiro andar... 
Não oiço já passos no segundo andar... 
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 

Vai tudo dormir... 

Fico sozinho com o universo inteiro. 
Não quero ir à janela: 
Se eu olhar, que de estrelas! 
Que grandes silêncios maiores há no alto! 
Que céu anticitadino! — 
Antes, recluso, 
Num desejo de não ser recluso, 
Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
Um automóvel — demasiado rápido! — 
Os duplos passos em conversa falam-me... 
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me... 

Vai tudo dormir... 

Só eu velo, sonolentamente escutando, 
Esperando 
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 

domingo, 26 de novembro de 2017

Irão, Dasht-e Kavir, o grande deserto salgado


Alguém bateu à porta da Bem-Amada, e uma Voz lá de dentro perguntou:
- Quem está aí?
E ele respondeu - Sou eu.
A Voz então disse:
- Esta casa não conterá nós dois.
E a porta continuou fechada. Então o Amante foi para o deserto e na solidão jejuou e orou. Retornou depois de um ano e bateu novamente à porta. E de novo a Voz perguntou:
- Quem é?
E o Amante respondeu:
- És tu mesma!
E a porta lhe foi aberta.

Rumi (Mestre Sufi do sec. XII)

sábado, 25 de novembro de 2017

torres do silêncio, Yazd, Irão


As Torres do Silêncio (também conhecidas como Cheela Ghar ou Dakhma) são construções em forma de torre circular que possuem usos e simbologias funerárias para os adeptos do zoroastrismo, uma religião fundada na antiga Pérsia pelo profeta Zaratustra, a quem os gregos chamavam de Zoroastro, sendo considerada a primeira religião monoteísta.
Algumas das suas concepções religiosas, como a crença no paraíso, na ressurreição, no juízo final e na vinda de um Messias, viriam a influenciar o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. 

Zaratustra foi um sacerdote ariano que viveu por volta de 600 a.C. e o zoroastrismo era uma versão reformada da fé ariana, que acentuava o princípio do dualismo – o eterno conflito entre o criador Ahuramazda e o seu adversário Ahriman, entre o bem e o mal, a verdade e a falsidade.

O Zoroastrismo acredita que a morte é um triunfo temporário do mal sobre o bem. Correndo dentro de corpo morto (nasu), há uma divindade, um demônio (Natu Daeva) que contamina tudo em que entra em contato, como a carne, cabelo, unha e ossos e que por isso um corpo morto é tão imundo que pode poluir tudo que toca. Existe um conjunto de regras, para descartar o cadáver da forma mais segura possível. Como os elementos naturais: terra, ar e água são sagrados, os cadáveres não podem ser enterrados ou atirados à água. A cremação também é proibida, porque o fogo é a origem direta da divindade Natu Daeva.

O funeral inicia-se com a lavagem do cadáver com a urina de um touro, feita por pessoas conhecidas como nasellares, algo como “cuidadores da imundice”. Uma vez “limpo”, o corpo é depositado numa espécie de altar de pedra iluminado por uma fogueira para ser inspecionado por um “Saglid”. Um cão, que segundo a crença é capaz de farejar a presença de maus espíritos capazes de se alojar nos restos mortais. O Saglid seria capaz de detectar qualquer impureza presente, o que tornaria necessário lavar novamente o corpo até ele estar purificado. O cão é trazido no mínimo cinco vezes ao longo de três dias. Apenas depois disso, o cadáver pode ser levado (à luz do sol) para um dakhma.

Os corpos são então expostos às aves de rapina e, assim, devorados num último acto de caridade e os seus espíritos podem viajar, levados pelos raios do sol. Mais tarde, descarnados e esbranquiçados, os ossos são lançados num poço existente no centro das torres de Silêncio, onde é adicionado cal para permitir que eles se desintegrem gradualmente. A prática de exposição dos mortos ao sol, conhecido como dokhmenashini, foi documentada pela primeira vez em meados do século 5 por Heródoto, mas o uso de torres apenas se verificou muito mais tarde, no início do século 9.
As torres são razoavelmente uniformes na sua construção, tendo um telhado quase plano, com o perímetro a ser ligeiramente maior do que o centro. O teto é dividido em três anéis concêntricos: Os corpos dos homens estão dispostos em torno do anel exterior, as mulheres no segundo círculo, e as crianças no anel central interno. Os fluidos saídos dos corpos são escorridos em canaletas e passam por diversos filtros com carvão e areia, antes de serem eventualmente despejados em lugar especifico, abaixo das torres.
A antiga prática sobreviveu entre os zoroastristas ortodoxos no Irão até que os dakhmas foram declarados uma ameaça à saúde e se tornaram ilegais na década de 1970. Ainda é praticada na Índia, por pessoas conhecidas como ‘parsi‘, que constituem a maior população de zoroastristas no mundo. A urbanização das cidades tem colocado pressão sobre os parsis  e dificuldades em continuar com o ritual da utilização das dakhmas para a desintegração dos corpos, mas a maior ameaça à dokhmenashini, não sãoas autoridades de saúde ou dos protestos de pessoas e ONGs, mas sim a falta de abutres.
Os abutres desempenham um papel importante na desintegração dos corpos, porém, a população destas aves tem diminuído na Índia desde os anos 1990. Descobriu-se que uma droga administrada no gado era fatal para os abutres que se alimentavam das carcaças. A droga foi proibida pelo governo indiano, mas a população de abutres ainda está longe de ter recuperado. Sem abutres, foram instaladas em algumas Torres do Silêncio, concentradores de raios solares para acelerar a desintegração dos corpos.
Tais concentradores solares têm o efeito colateral de afastar outras aves que se alimentavam dos corpos, como os corvos, devido ao calor extremo nas torres. Também não funcionam durante os dias nublados e chuvosos. Assim, uma "operação" que levaria apenas algumas horas para um bando de abutres, leva  agora semanas. Os corpos em lenta decomposição acabam por trazer muitos problemas para a área circundante devido ao cheiro exalado pelas torres e muitas tiveram que ser extintas.
O termo “Torre do Silêncio” é um neologismo atribuído a Robert Murphy, que em 1832, foi um tradutor a serviço do governo colonial britânico na Índia. Este termo nunca foi uma tradução literal, e sim uma forma "poética" usada para traduzir o nome do lugar. No Irão, antigamente, o islamismo proibia a dissecação de cadáveres, uma vez que esta era considerada uma forma de mutilação. Como não havia cadáveres para estudo disponíveis para as escolas de medicina, os corpos eram roubados dos dakhmas, causando indignação da comunidade zoroastrista.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Dasht-e Kavir, Irão


The world is like an eye, a beard, a spot of beauty and eyebrow, Where each thing is neatly in place.

Hafez, Poeta Persa  (1315-1390), Shiraz

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Praça Jemaa el-Fna, Marraquexe, Marrocos


Na praça Djemaa el Fna, o vibrante centro mágico de Marraquexe são contadas histórias para o halqa - os ouvintes que se reúnem para ouvir contos transmitidos por gerações de contadores de histórias, histórias que reúnem e perpetuam as tradições e a magia de Marrocos.

Em maio de 2001, a UNESCO honrou essa tradição cultural e ajudou a consolidar sua preservação quando proclamou a atividade criativa em Djemaa el Fna como "obra-prima do patrimônio oral e intangível da humanidade". A falta de estruturas institucionais, no entanto, significa que tais formas de arte tradicional em Marrocos, como em muitos outros países, estão em uma situação bastante precária.

Os contadores de histórias de Djemaa el Fna muitas vezes "desfiam" seus contos a um ritmo tremendo, mas é sempre no dialeto marroquino, destinado a uma audiência local que está disposta a reunir-se noite após noite na praça iluminada, aguardando ansiosamente a próxima parcela da história do dia anterior .

Jardin Majorelle, Marrakech


Era dali. Iria a lugar nenhum porque nunca se levaria por completo. Nunca iria.

Valter Hugo Mãe in "Homens Imprudentemente Poéticos"

Alcoi, "entre moros i cristians"


DIFÍCIL ÉS DONAR UN NOM A CADA COSA... 

Difícil és donar un nom a cada cosa 
mentre els camins resulten pedregosos i infausts.
Mire el paisatge august dels conreus profitosos
i sols recullc un poc de mots elementals:
poma, pruna, taronja, tomaca i albergínia
i un etcètera patri d’altres fruits naturals.
Del blau mediterrani: lluç, tonyina, llobarro,
clòtxina, déntol, sípia, sardina i calamar.
L’ampla geografia del país és nutrícia,
com l’antiga deessa de malucs i pits grans.
Versaires que la canten cauen al dèdal pànic
pel polícrom barroc que els atorrolla el cant.
De bell nou tornarem al clam admiratiu
amb un intent feréstec d’ésser originals.

Joan VALLS JORDÀ, Obra poètica, Ed. Instituto de Estudios Alicantinos, Alacant, 1981.

Bassin Ménara, Marraquexe, Marrocos


Originalmente, o "lago" foi criado para irrigar o grande olival dos jardins de Ménara. Actualmente ainda cumpre esta função, como no seu início, há mais de 700 anos, transportando a água das montanhas do Atlas distantes 30 kms. Os jardins foram plantados pela dinastia Almohad.

Tolomddima, Madagáscar



(...) há outras que são simplesmente pessoas, e se calhar isso é o mais pernicioso do mundo, de todas as galáxias conhecidas e desconhecidas, o facto de sermos pessoas.

Afonso Cruz in "Nem Todas as Baleias Voam"

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Comboio Fianarantsoa-Manakara, Madagáscar


A força do hálito

A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.
Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.
Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.
"Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!"
Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.
Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.
Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.

Alexandre O'Neill (1969)

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Arrozal, Madagáscar


O enforcado

No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
Dele sobra o cajado.

Alexandre O'Neill (1979)

quinta-feira, 8 de junho de 2017

L'allée des baobabs. Morondava, Madagáscar


Poema Das Árvores

As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.

António Gedeão

Rio Tsiribihina, Madagáscar



Se te queres matar, porque não te queres matar?

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

26-4-1926
Poesias de Álvaro de Campos

Sahara, Marrocos


Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'

Entardecer em Antananarivo, Madagáscar



O Destino Desconhece a Linha Recta

O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha recta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como uma flecha apontada directamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se. Tanto assim que antes de converter Rimbaud em traficante de armas e marfim em Africa, o obrigou a ser poeta em Paris.

José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1994)'

Florença, Galleria degli Uffizi


Abre a mente ao que eu te revelo 
e retém bem o que eu te digo, pois não é ciência 
ouvir sem reter o que se escuta.

Dante Alighieri in "Paraíso"

Pisa, Toscânia, Itália


A torre de Pisa

A torre de Pisa
em Itália
como qualquer torre
não fala

Inclina-se
para a frente
e cumprimenta
a gente

Não é como
a torre de Belém
que não cumprimenta
ninguém

antónio josé forte
in "uma rosa na tromba de um elefante"

Ponte Vecchio, Florença, Toscânia, Itália.


SONETO DE FLORENÇA

Florença... que serenidade imensa
Nos teus campos remotos, de onde surgem
Em tons de terracota e de ferrugem
Torres, cúpulas, claustros: renascença

Das coisas que passaram mas que urgem...
Como em teu seio pareceu-me densa
A selva oscura onde silêncios rugem
No meio do caminho da descrença...

Que tristes sombras nos teus céus toscanos
Onde, em meu crime e meu remorso humanos
Julguei ver, na colina apascentada

Na forma de um cipreste impressionante
O grande vulto secular de Dante
Carpindo a morte da mulher amada...

Vinicius de Moraes

Siena, Itália


FLORENÇA-SIENA

Concerto para muros e ciprestes
numa escala de colina - não há fífias
na paisagem pós-divina da Toscânia.

As aves interpretam arabescos
concebidos pelo lápis de Da Vinci,
os rochedos de Ghiberti fazem vénias

à passagem do comboio, as oliveiras
e as faias são zincadas amiúde
por ferreiros eruditos, e o coro

feminino dos vinhedos, ensaiando
por Puccini, canta loas afinadas
ao engenho cenográfico do homem.

A morte, o imprevisto, o tremendismo
natural só comparecem, neste parque
do possível, como artistas convidados

(embora o Arno, às vezes, se amotine
em regressivas enxurradas de mau gosto,
enxovalhando as racionais disposições),

e até o próprio Deus, se quer entrar,
compra bilhete, aproveitando, de passagem,
para ver como se faz um paraíso.

José Miguel Silva

La Rambla, Barcelona


1,24Km de magia.

Platja de la Mar Bella, Barcelona


Praia

Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
A praia é lis e longa sob o vento
Saturada de espaços e maresia
E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Michaelmas Cay, Grande Barreira de Coral, Cairns, Austrália


quarta-feira, 7 de junho de 2017

Tsingy de Bemaraha, Madagáscar


NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

Comboio Fianarantsoa-Manakara, Madagáscar


Enquanto dormem,
devoram paralelas infinitas.

Os comboios,
pois é deles que falo,
consentem sonolências,
no limiar das pálpebras
da madrugada.
Balanço de ombros afrontando
a austera textura das cortinas.
A espaços,
a sombra de uma casa
contra o rosto.
Brevíssimos instantes
de noites serenas
na primeira estação anunciadas.

Despertam quando param,
os comboios.
E nós com eles,
sabendo do regresso.

Licínia Quitério

L'allée des baobabs. Morondava, Madagáscar


Faz-se Luz

Faz-se luz pelo processo 
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny, in "Pena Capital"

Australia, Alice Springs, The Ghan


Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no comboio.

Oscar Wilde

Kings Canyon, Parque Nacional de Watarrka, Nothern Territory, Austrália


Querem uma Luz Melhor que a do Sol!

AH! QUEREM uma luz melhor que 
a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol,
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Kata Tjuta, Uluru, Austrália


Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego"

terça-feira, 6 de junho de 2017

Amanhecer em Ayers Rock, Uluru, Austrália


Não, não é nesse lago entre rochedos,

Não, não é nesse lago entre rochedos,
Nem nesse extenso e espúmeo beira-mar,
Nem na floresta ideal cheia de medos
Que me fito a mim mesmo e vou pensar.

É aqui, neste quarto de uma casa,
Aqui entre paredes sem paisagem,
Que vejo o romantismo, que foi asa
Do que ignorei de mim, seguir viagem.

É em nós que há os lagos todos e as florestas
Se vemos claro no que somos, é
Não porque as ondas quebrem as arestas
Verdes em branco [...]

26-4-1932
Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa.

S Jacinto


IV

Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...

A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...

Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...

Álvaro de Campos